Moçambique: uma viagem de ajuda humanitária na África

Como Agrônoma sempre sonhei em  realizar algum trabalho voluntário pela FAO (Food and Agriculture Organization) na África. A existência de situações de fome extrema em determinadas regiões do mundo, em um planeta onde o que não falta é alimento é, pra mim, algo inaceitável. Mas a questão é polêmica e permeia (des) interesses políticos e econômicos, assuntos sobre os quais não me julgo a pessoa mais indicada para discutir ou opinar.

As oportunidades de trabalhar pela FAO que surgiam não se ajustavam às minhas condições de vida familiar, mas a vontade de conhecer pessoalmente a situação de miséria no Continente Africano persistia. Difícil acreditar que aquilo era verdade.

Fotografia feita por Mike Wells, em abril de 1980, mostra uma criança da província de Karamoja, Uganda, de mãos dadas com um missionário.

Muitas pessoas comentam que não aguentariam vivenciar essa realidade. Eu acredito que as transformações mais profundas são aquelas experimentadas, vividas de fato. Muito da minha filosofia de vida atual, a de procurar viver da maneira mais simples possível, limitando ao máximo o consumismo material, se deve a situações pelas quais passei. Enfim, vai de cada um.

Fraternidade sem Fronteiras: a oportunidade surgiu!

Um belo dia, lendo uma reportagem da Revista Vida Simples, descobri a Fraternidade Sem Fronteiras. Trata-se de uma Organização não Governamental que desenvolve trabalhos de ajuda humanitária no Brasil e na África e que organiza Caravanas para Moçambique e Madagascar.

Eureka! Era tudo que eu queria: participar de uma Caravana de Ajuda Humanitária na África. Entrei no site e me informei.

Na época, uma das condições para participar era a adoção de uma criança africana.

Com uma quantia de apenas R$ 50,00/mês, essa adoção significaria o acolhimento nos centros de atendimento da FSF, onde é fornecida uma refeição diária (arroz, feijão e frango), reforço escolar e outras atividades.

Eles são muito organizados. Depois de poucos dias recebi um e-mail com os  dados da minha afilhada.

Gertrandez tinha 8 anos na época, e foi atendida pelo Centro de Acolhimento da Aldeia de Mahatlane. Por conta da seca, que assola a região, onde vive há 13 anos, seus pais, que são agricultores, não conseguiam emprego. Estavam se alimentando apenas de raízes, quando a família foi encontrada e encaminhada para o Centro de Acolhimento da Fraternidade sem Fronteiras.
Depois do apadrinhamento, preenchi o formulário demonstrando interesse em uma caravana para Moçambique. Coincidentemente, na mesma época, iria acontecer o I Encontro da Fraternidade sem Fronteiras em Campinas, onde moro. Me inscrevi e lá conheci pessoalmente a Cristiane, responsável por organizar as caravanas. Me apresentei e peguei o contato dela. Daí pra frente tudo deslanchou. Eu e minha filha fomos incluídas em um grupo que sairia em fevereiro de 2018.  Na Caravana da Saúde estávamos eu, agrônoma e minha filha, fotógrafa. “No que iríamos contribuir ou ajudar?”- essa pergunta foi comigo na bagagem.

Unindo o útil ao agradável – Por que não?

Antecipei o nosso voo de ida em 3 dias para aproveitar a oportunidade e conhecer um pouco mais de Maputo, a capital, e arredores.  Pesquisando, encontrei algumas opções interessantes:

  1. Reserva Especial de Maputo -Fizemos com Mabeco Tours;
  2. Ilha de Inhaca – Fomos de lancha com a Number1boatcharters;
  3. Mafalala Walking Tour – não conseguimos fazer, mas parece ser muito bom;
  4. Free Walking Tour em Maputo – excelente! Acesse: http://www.maputofreewalkingtour.com/

 Um pouco sobre Moçambique

Banhado pelo Oceano Índico, só alcançou a independência de Portugal em 1975. Dois anos depois começou uma guerra civil no país que durou cerca de 15 anos e deixou mais de 1 milhão de mortos. A maior parte da população vive na zona rural. O transporte em caçambas abertas  (“my love”) e o deslocamento a pé, na beira das estradas, são cenas rotineiras no país.
 
em Moçambique são faladas mais que 30 línguas, sem contar os dialetos. Mais da metade da população vive com 18 meticais/dia, equivalente a  menos de 200 dólares anuais! No sul, há povos patriarcais e polígamos, como os machangana e no norte os matriarcais, como os macuas.
Muitas pessoas me perguntavam “Por que você foi para Moçambique com tantos pobres aqui?”. Como expliquei inicialmente, era um sonho que tinha: realizar uma viagem de ajuda humanitária na África. Acho sem sentido também ficar comparando níveis de pobreza, parece que se trata de um rali de miséria. No entanto, apenas a título de informação, achei essa tabela no excelente livro de autoria de Amanda Rossi.
  Fonte: Amanda, Rossi. O Brasil é aqui.2015

Maputo – o eixo político do país

Vista do nosso hotel em Maputo, região central.
Maputo é uma cidade de ruas largas e bairros contrastantes.
O idioma mais falado na capital e região que visitamos é o changana, do povo machangana originário daquela região. O português é a língua materna para apenas 10% da população. Após a independência de Moçambique, o país se aproximou do socialismo, por isso os nomes de rua Marx, Lenin, etc.
A nossa chegada foi no belíssimo Aeroporto Internacional de Maputo, uma discrepância dentro da realidade do país. Obra dos chineses, que aliás estão por toda a parte: hoteis, fábricas de cimentos, construção de estradas e pontes.
Aeroporto Internacional de Maputo, Moçambique
Hotel chinês de luxo em Maputo, Moçambique.

A  singular bandeira moçambicana

É a única que tem uma arma- repare a substituição do foice e martelo, símbolos do comunismo e socialismo, pela enxada e fuzil (AK 47).

Bandeira de Moçambique

Muzumuia, o Centro de Acolhimento da Fraternidade sem Fronteiras

 No dia combinado, nos encontramos com o restante do grupo no Aeroporto.
 O local onde nos estabeleceríamos, primeiramente, era a Aldeia de Muzumuia, a 215km ao norte de  Maputo, na Província de Gaza.
O Centro de Acolhimento da Fraternidade sem Fronteiras de Muzumuia é o mais “sofisticado” de todos. Lá são atendidas mais de 1000 crianças.

No nosso dormitório (coletivo) tínhamos até ar condicionado e um banheiro interno com água corrente.

A comida era carinhosamente preparada pelo Sebastião e seu séquito de auxiliares.

“O sonho de todo africano é sair da África, ir para  Europa ou para qualquer outro canto do mundo”(Sebastião Chicavele- nosso cozinheiro em Muzumuia)

O grupo de aproximadamente 42 pessoas foi dividido em dois: metade permaneceu na Aldeia de Muzumuia e  metade foi para a Aldeia de Dingue, próxima ao município de Chicualacuala, mais ao noroeste do país. Seriam mais 7 horas de carro, na imensa maioria, em estradas de terra. Eu e minha filha pedimos para ficar nesse grupo apelidado de “raiz”. O outro, foi o “nutela”.

Caravana Raíz

Na estrada vimos crianças brincando com aro de bicicleta e vareta- muito comum por lá.

Mais da metade da população moçambicana (69%) vive na zona rural, em aldeias como essa, da foto. O acesso ao saneamento básico é privilégio de apenas 21% das pessoas.

Construções locais- a da frente é o “banheiro”

 Caravana Raíz? Por que?

Nossos alojamentos em Dingue não tinham água corrente, os banhos eram de canequinha, eletricidade por geradores somente durante algumas horas. Havia duas salas de aula transformadas em quartos. Dormimos em colchões distribuídos no chão sob mosqueteiros e o nosso quarto literalmente lotou. Havia dezesseis mulheres dividindo aquele espaço. Sem ventilador, nem ar condicionado e um calor do cão. Comecei a questionar se estava passando bem dos miolos quando entrei naquela van que ia para Chicualacuala.

Instalações sanitárias e de banho no Centro de Acolhimento da FSF na  Aldeia de Dingue

Meu colchão era o último do canto e a luz quase não chegava lá. Os que estavam perto da porta recebiam mais iluminação, em compensação, a claridade atraia batalhões de insetos.

Procurei esquecer que os cantos entre as paredes formavam excelentes esconderijos para alojar escorpiões. Um exemplar deles, inclusive, foi posteriormente  localizado nas proximidades dos banheiros.

Toda essa minha primeira impressão, mesquinha e egoísta, começou a se transmutar com o passar dos dias. Um colchão no chão era, na verdade, um luxo, para quem dorme todos os dias sobre a terra ou uma esteira.

A rotina da Caravana Raíz

Acordávamos cedo. O som do despertador era gostoso, suave. Quase que simultaneamente as primeiras réstias de luz invadiam o nosso quarto. Um balde com água e canecas de plástico nos aguardavam nos “lavatórios”. As mulheres  do centro pegavam no poço e traziam nas cabeças. A recomendação era a de utilizar somente as garrafinhas de água que trouxemos. Nosso procedimento era racional, havia a questão dos cuidados com a saúde, eu sei, mas me incomodava.”Por que a água que eles consumiam não nos servia para escovar os dentes?, poderiam pensar. Nós tínhamos a água potável e limpa. Eles tinham água e isso já era um sonho para eles.

O café da manhã (matabicho) era preparado na “cozinha” ao ar livre. Em uma frigideira sobre a fogueira, nossos ovos eram fritos. Ovo frito, pão, nescafé, achocolatado, manteiga. Garrafas térmicas com água quente e leite.

Vans prontas e partíamos para alguma aldeia. Nem sempre era fácil chegar. Havia chovido naqueles dias. As estradas eram de terra e, às vezes,  as poças eram profundas e o risco de atolar grande.

À noite, após retornar do atendimento nas aldeias, nos reuníamos para conversar, aliviar um pouco a alma e o coração, sobrecarregados com a vivência do dia.

Atendimento nas Aldeias

Visitamos 4 diferentes aldeias:  3 de fevereiro,  Maysse,  Mahatlane e  Chicualacuala Rio. Algumas eram longe, cerca de 2 horas e meia de distância da nossa base, na Aldeia de Dingue.

Ajudar? Como?

Sou agrônoma e participei em uma Caravana da Saúde, onde o foco era a assistência médica e odontológica. Ajudei de diversas formas: tomando medidas das crianças (peso e altura), ajudando na distribuição de doações, no encaminhamento das crianças para exames clínicos, na escovação dos pequenos, distribuição de alimento, enfim TODOS têm algo a contribuir.

“Famba le” (=vai lá, em changana)

Cuidados e precauções- o que levar

É preciso ter consciência de que você está indo para um país onde o saneamento básico é inexistente ou escasso. No melhor hotel de Chicualacuala, onde passamos a nossa última  noite antes de retornarmos para Muzumuia, utilizei lencinhos de papel umedecidos para limpeza corporal. Não havia água corrente.

Balde com água para banho, Hotel de Chicualacuala, Moçambique

Isso significa que cuidados extras devem ser tomados para evitar problemas de saúde, durante e após a caravana. Praticamente todos os companheiros da Caravana Raiz, tiveram quadros diarreicos. Eu escapei ilesa. Trabalhei durante 30 anos com segurança alimentar (acesso ao alimento sem risco de contrair doenças), por isso lhe dou os seguintes conselhos:

  • beba somente água de garrafinha, aquelas fornecidas pela caravana, utilize essa água inclusive para escovação de dentes.
  • leve  barrinhas de cereais e de proteinas, pães desidratados, frutas secas, melzinho em saquinhos, atum em lata.
  • faça a desinfecção das mãos com álcool gel sempre que possível
  • não consuma alimentos crus.

O que  Moçambique me ensinou? A mais genuína e autêntica gratidão.

“Mudar o mundo, meu amigo Sancha, não é loucura, nem utopia, é justiça”Dom Quixote

Na parede interna da FEIMA (Feira de Artesanato de Maputo), Maputo, Moçambique.
Na parede interna da FEIMA (Feira de Artesanato de Maputo), Maputo, Moçambique.

Voltando para o Brasil senti um misto de tristeza e indignação. Tristeza pelo ser humano egoísta que mora dentro de nós (onde me incluo completamente). Vivemos nossas vidas ignorando que muitos vivem de maneira indígna e inaceitável, pois carecem do essencial.

São humanos como nós, ficam doentes e tem dor, chamam e querem a mãe, tem fome, dormem sobre a terra, se alimentam quando possível, vestem trapos, bebem água suja da poça, fazem as necessidades ao relento, viram adultos quando ainda são crianças..

mas, ainda, e mesmo assim, colocam a melhor roupa que tem para nos receber…

Ficam felizes e sorriem quando recebem um cadinho de amor e de atenção e, pelo pouco que recebem, diante da imensidão que carecessem, manifestam a mais genuína gratidão 🙏.

Kanimambo Moçambique, Kanimambo África
Kanimambo companheiros da caravana
Kanimambo Fraternidade sem Fronteiras
Indico a leitura do livro “O Brasil é aqui”, de autoria da jornalista Amanda Rossi. Várias informações e dados que menciono nesse post foram retirados de lá.
 
Acesse e conheça: www.fraternidadesemfronteiras.org.br
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4 respostas

  1. Fê, parabéns por expressar o que vivemos e nos fazer sentir cada um desses momentos novamente. ❤ Kanimambo Querida! 😘😘😘

  2. Boa noite Fernanda,
    Estou com muita vontade de ir a caravana de Moçambique do ano de vem.
    Gostei muito da sua materia no blog.

    1. Oi Adriana, que bom que gostou! A experiência é fantástica. Você voltará declarando seu amor pela torneira e chuveiro da sua casa. Coisas que passam desapercebidas no nosso dia-a-dia e que não valorizamos. Além disso tudo, a África é um continente maravilhoso e Moçambique tem algo especial. Estou programando outra, para Madagascar, tudo depende do dollar,né? bjão e boa sorte!

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