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Subindo o Rio Amazonas: de Belém a Santarém.

 

À espera da partida, Porto de Belém, Pará.
Na embarcação, à espera da partida no Porto de Belém, Pará (Foto: Júlia Moretzsohn)

De Belém à Santarém pegamos uma embarcação regional. Aquela que as pessoas utilizam rotineiramente para se deslocar por grandes distâncias, no norte do país.

Durante três dias vivenciamos um outro Brasil.  Conhecemos um povo com uma realidade completamente distinta da nossa.  Um povo simples, bom e resignado.

A demora para partir

O barco era para sair às 18h, partimos às 22h. Além de pessoas, a embarcação carregava  cargas: tomates e melões.

Embarcação antes de partir
Crianças arrumadinhas aguardando a partida (Foto: Júlia Moretzsohn).

Na primeira parada, em Breves, atrasamos mais 2 horas para colocarem cabos de vassoura . Nunca ví tanto cabo de vassoura na minha vida. A madeira utilizada provinha de uma área de reflorestamento. Pelo menos é isso que me contaram.

Foi rotineiro? Monótono?

Para mim, não existiu rotina nem monotonia. Algo inusitado sempre acontecia. Um amanhecer em tons pasteis no rio, os sons da mata de madrugada, as palafitas coloridas, os botos que do nada surgiam e do nada desapareciam,  a revoada dos pássaros ao entardecer. À noite, um tapete estrelar coroava mais um dia percorrido e, do nada, desaparecia.

Depois da revoada, o descanso, no Rio Amazônas, Pará (Foto:Júlia Moretzsohn)

 

A vida nas palafitas, na selva e no rio (Foto: Júlia Moretzsohn).

De repente, ouvíamos um grito ininteligível. Surgia uma canoa de dentro da mata. Às vezes era mãe e filho, às vezes eram crianças pequenas. Remavam em direção à embarcação esperançosos de conseguir algum donativo.

De onde vieram? (Foto: Júlia Moretzsohn)

Passageiros arremessavam sacos plásticos que permaneciam sobre as águas até serem recolhidos para dentro da canoa. Os ribeirinhos são os pobres-pedintes amazônicos.

Traços indigenas marcantes (Foto:Júlia Moretzsohn).

Vez ou outra aparecia uma escola sobre palafitas. Ví campinhos de futebol, mas estavam alagados.

Escola em palafitas, no Rio Amazonas, Pará. (Foto: Júlia Moretzsohn).

Do lado da embarcação, vendedores amarravam suas lanchas e subiam feito “homens-aranha”para oferecer alguma coisa para os passageiros.

Vendedores do Rio Amazônas, Pará (foto: Júlia Moretzsohn).

Nas paradinhas, cenas de um outro mundo.

Crianças de havaianas nos pés e sorrisos nos lábios. (Foto: Júlia Moretzsohn).
Liberdade é sentar em um beiral de janela descalça (Foto: Júlia Moretzsohn)

À tardinha, na embarcação, as crianças vestiam seus pijaminhas  para dormir. As meninas de vestidinho, batom  e cabelo recém lavado aguardavam a hora do jantar. Um grande evento.

Batom rosa e cabelos recém-lavados.

Algumas crianças tinham fortes traços indígenas, olhos cor de mel ou verdes. Achei os papos e o comportamento delas muito sexualizados para a pouca idade.

Olhos cor de mel e pele bronzeada (Foto: Júlia Moretzsohn).

Havia idosos e bebês de colo. Na fila do chuveiro, uma moça aguardava a sua vez com seu cachorrinho no colo. O cãozinho saiu tinindo, limpinho e cheiroso. Não deu um latido sequer durante toda a viagem, um verdadeiro Lord.

Cão Lord e um Lord cão: depois do toalete.

Um senhor com bengala lia muito, acho que era  um livro religioso, mas não me pareceu ser a Bíblia. Quando não estava lendo, sentava em uma cadeira de plástico e ficava de frente para o rio, parado, pensativo, mas não era para o rio que olhava. Será que dormia de olhos abertos?

Passa o rio, passa a vida (Foto: Júlia Moretzsohn).

Ofereci um comprimido de analgésico a um moço com febre que estava estendido na proa, mas isso foi logo que subimos no navio e  esqueci de contar.

Uma menina com transtornos mentais ficava sentada o dia todo encarando o rio, como se este fosse um urso polar branco. De repente, berrava.

Um pinguço que se encharcou logo no primeiro dia, cortejava todas as mulheres que cruzavam sua frente. No segundo dia a pinga extinguiu seu último resquício de lucidez. Foi acometido de choque alcóolico, tremia na rede, tinha espasmos, suava frio. Foi levado a um PS em uma das cidades ribeirinha, nem me lembro qual. Voltou com soro no pulso. Daí para frente permaneceu em estado de reflexão contínua, largado na sua rede que ficava pendurada próxima à fervura dos motores.

Alguém disse em voz alta que havia uma criança com pneumonia – “Isso pega?”- perguntou minha filha. Disse que não, para acalmá-la, mas confesso que não sei.

Um ronco no último volume era motivo de risadas e chacotas no meio da madrugada. No cochilo da tarde o barrigudo também roncava, mas não parecia tão alto, acho que é  porque se misturava com os sons das músicas bregas do segundo andar.

Eu acordava no meio da noite com o movimento da mulher que estava na rede, embaixo da minha. Não havia o que fazer, o melhor era não se mexer.

Um dia, no meio da tarde, a cozinheira saiu pela embarcação avisando que as panelas haviam caído das prateleiras. As pessoas  estavam todas do mesmo lado do navio para fugir do sol.  Mas ninguém levou muito a sério a cozinheira e o fato de que o navio poderia virar.

Nós ficamos no primeiro andar, onde o som brega chegava mais enfraquecido e havia um pouco mais de ventilação, com exceção da área próxima aos banheiros e motores, que ficava antes do refeitório. Não sei como as pessoas conseguiam ficar lá. Não havia exaustão de ar. O odor dos toaletes invadia o ambiente toda vez que alguém abria ou fechava uma das portas dos sanitários.

No primeiro andar também, uma das iluminações ficava bem em cima da minha rede, a um palmo (ou dois, no máximo) do meu nariz.  A colônia de aranhas que usava a luminária como suporte para teia, aumentava dia após dia,  noite após noite. Eu fingia não estar acompanhando essa evolução.

Ainda sobre aracnídeos e afins, um fenômeno estranho aconteceu no terceiro dia. Sobre as toalhas que ficavam estendidas para secar, penduradas nos ganchos da rede, notei uma multidão de besourinhos marrons. Nada de mais sério se não fosse o fato de migrarem para nossas redes de vez quando. Não gosto de dormir com estranhos.

No segundo andar, era um pouco diferente.

As redes estavam colocadas de maneira muito mais organizada que no primeiro e as luminárias eram azuis.

Se soubesse, teria optado pelo azul (Foto: Júlia Moretzsohn).

No segundo andar também tinha uma lanchonete. O misto quente saia por R$5,00 e a cerveja idem.

Havia uma tela (pequena) onde passavam vídeos de shows de música e cantores brega. Lá que os passageiros se distraiam jogando baralho ou dominó. O moço que ia participar do Festival de Parintins gostava muito de dançar e até se ofereceu para me ensinar alguns passinhos.

Só no final do segundo dia que descobrimos que havia uns chuveiros ao ar livre, para se refrescar. Eles ficavam no segundo andar, depois da área das redes. A moçada se reunia para conversar e se refrescar nos chuveiros. As crianças e o cãozinho Lord, também.

“Ah! Esses moços, se soubessem o que eu sei. “(Foto: Júlia Moretzsohn).

Ah! O pôr do sol no rio.

Perto do final da tarde ficávamos aguardando o pôr do sol, sentados no chão da proa do navio.

Pôr do sol em rio não dá para descrever de tão lindo que é. A gente tirava fotos até dar cãimbra nos dedos.

Não existe repetição (Foto: Júlia Moretzsohn)
Nem qualquer comparação. (Foto: Júlia Moretzsohn).
Cada pôr do sol é único. (Foto: Júlia Moretzsohn).
E aquele tinha bordas prateadas e salientes. (Foto: Júlia Moretzsohn).

Porque os navios afundam no norte do país.

Eu gosto de aventura, mas com segurança. Antes de sairmos de Belém, pedi para conversar com o responsável pela embarcação que me assegurou que respeitavam os limites de lotação -“Minha senhora, isso é pergunta que se faça?”. Pois é, acreditei.

A embarcação parava e mais gente entrava quando já não havia mais espaço,  mas sempre achava-se algum, nem que fosse  para pendurar uma rede sobre a outra, em andares. E para eles parecia tudo normal. Ninguém reclamava ou achava abusivo. Isso me irritou profundamente.

Confesso que, em alguns momentos, pensei em pegar a minha filha e abandonar o navio. Cogitei de descermos em uma das cidades ribeirinhas e tentar chegar por terra em Santarém. Só não o fiz, porque o risco de ficarmos literalmente ilhadas, na imensidão do nada, era grande. Lá tudo é muito distante. As opções de ônibus são poucas e o tempo de viagem longo.

Pensei nessa possibilidade não pelo desconforto da viagem, tenho uma forte resiliência para situações de selva (rs), mas por questões de segurança.

Enquanto havia espaço colocavam gente, não havia nenhuma fiscalização. Achei um absurdo, total desrespeito com a população.

As redes ocupavam os espaços, mesmo quando não havia mais nenhum. (Foto: Júlia Moretzsohn)

Durante à noite descia da rede pisando sobre as malas que ficavam espalhadas pelo chão. Passava praticamente engatinhando por sob aquele emaranhado de tecidos pendurados que tomavam conta dos corredores, pois só assim conseguia chegar até os banheiros.

As refeições

Um pouco antes do horário das refeições, uma senhora muito mal humorada sentava em uma mesinha que ficava bem próxima das nossas redes e começava a vender os vales para serem entregues no refeitório.

O café da manhã, almoço e jantar eram servidos em um compartimento que ficava nos fundos do navio, no primeiro andar. Caso alguém quisesse comer nas redes, havia a opção de pegar marmitas prontas. Do nosso lado, a mãe da moça que ainda não sabia onde tinha nascido, fazia as refeições sempre na rede. Achava desconfortável para uma idosa mas talvez ela estivesse habituada com isso.

O abafamento no refeitório era quase insuportável, o ar-condicionado não dava conta do calor amazônico. Por isso começamos a fazer a refeições no finalzinho do horário, quando a maioria das pessoas já tinha saído e as mesas estavam mais vazias. Era o momento de sentar e conversar, aprender o nome dos peixes e que alguns, eram assim mesmo, não estavam torrados de tanto assar.

Olhe bem e acredite. Sou assim mesmo. Sempre fui.

O cardápio era sempre o mesmo:

Café-da-manhã: pão com ovo frito, queijo quente e presunto e uma fatia de fruta, geralmente melancia.

Almoço e jantar:  arroz, feijão, farofa, frango, salada e macarrão.

Menu do dia? O mesmo de ontem e de amanhã.

Sobre a embarcação

Tomamos o navio Nélio Correa em Belém, que eu NÃO indico pelos seguintes motivos:

  1. Além dos passageiros, para em outras localidades para pegar cargas, tipo cabos de vassoura em Breves, o que acarretou um baita atraso.
  2.  Não sai no horário – deveríamos sair às 18 horas, saímos às 22 horas.
  3. Condições de higiene precárias – não existe ventilação nos banheiros, sacos de lixo acumulando na embarcação.
  4. Super lotação – enquanto houver espaço colocam-se redes.

Qual embarcação tomar? A Amazon Star foi a mais indicada pelas pessoas que costumam fazer esse trajeto.

Montamos nossas redes no primeiro andar do Navio Nélio Côrrea, logo pela manhã.  Não havia mais camarotes, quando compramos as passagens no Terminal Hidroviário, logo que chegamos em Belém.

O barco faz paradas rápidas em Breves, Gurupá, Almeirim, Prainha, Monte Alegre e Santarém.

Em algumas delas é possível sair para fazer umas comprinhas nos mercados que ficam perto do porto, comprar um queijo coalho ou chopp de frutas. O que eles chamam de chopp de frutas, no Pará, é um congelado de suco de frutas.

Em Monte Alegre alguns passageiros desceram para visitar o Parque Nacional de Monte Alegre, onde existe um sítio arqueológico bem interessante. #ficaadica

O que faria de diferente?

Escolheria outra embarcação, como a Amazon Star.

Faria de embarcação o trecho de Manaus à Santarém, a favor da correnteza, que além de ser mais rápido e curto, passa por Óbidos e Parintins, dois lugares que gostaria de conhecer.

Se eu fosse você prestaria atenção nessas dicas

1. Fique de olho na sua bagagem, principalmente quando entram vendedores na embarcação. Nós amarramos as mochilas em estrados de madeira que havia sob as redes.

2. Nas paradinhas aproveite para se abastecer nos mercados e padarias próximas ao porto.

3. Compramos nossas redes de nylon, no mercado Ver-o-Peso, são leves e portáteis, mas o tecido esfria de madrugada, tenha um agasalho fácil em mãos.

4. Ajuste seu roteiro de acordo com o dia que sai a melhor embarcação.

5. Evite período de férias quando os riscos de super lotação são maiores.

6. Se tiver tempo, estude a possibilidade der descer em Breves, na Ilha de Marajós ou Monte Alegre, onde fica um parque arqueológico.

E você? Faria uma viagem assim?

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Um forte abraço!

 

 

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12 respostas

  1. Amei as fotos, a viagem parece tudo de bom, tenho vontade de fazer esse passeio, pelo quesito aventura, porém ainda tenho medo da agua, da natureza viva…rsrs
    Mas as fotos que postou são uma verdadeira injeção de estimulo

    Abraços

    1. Adelaide, as fotos foram tiradas pela Júlia, minha filha, ela é uma artista! (mãe coruja?), estou incentivando-a a fazer uma exposição. Tirou mais de 2000. Eu amooooo uma aventurazinha e natureza. Faça! Todo brasileiro tem que conhecer a Amazônia. Mas não pegue a embarcação que pegamos, hein? bj

  2. oi
    sou paraense, de Belém do Pará, mas desde novembro de 2014 voltei a morar em Fortaleza. Já fizemos essa viagem de Belém a Manaus (3 dias de viagem) e essas fotos – lindíssimas! – me encheram de nostalgia.

    1. Obrigada Tetê!!! A maioria das fotos foram tiradas pela minha filha, fotografa. Essa viagem foi muito marcante pra mim. Adoro seu Estado. Voltei pra Belém no ano seguinte para conhecer Marajó e Ilha do Algodoal. bj grande!

  3. Você escreve muito bem!
    Seus relatos são divertidos.
    Infelizmente não há mesmo fiscalização nessas viagens,
    o que é de lamentar.

  4. Sou da mata do rio Piriá, noreste paraense. proponho conhecer Viseu e seus encantos, ytacupim é lindo! em Viseu. Em Belem tem Cotijuba, praia vai-quem-quer, só alegria. parabens pela aventura.

  5. Acho que a superlotação e a irresponsabilidade são características da navegação amazônica, desde sempre. Eu não faria essa viagem, pois não tenho muita paciência para desorganização e desconforto acima do tolerável. Não é que eu seja exigente, pois já fiquei em hotéis ruins. Mas tudo tem um limite.

    Morei em Belém durante 11 meses, no ano de 1967. Na época, gostei muito. Voltei em 2003 e me decepcionei.

    Eu até gostaria de ir de Belém a Santarém, mas não num barco. Prefiro o avião. Não sei nadar e não estou a fim de morrer afogado.

    1. Olá Helio,

      Grata pelo seu comentário. Acho que a escolha da embarcação e a época de fazer a viagem são fatores relevantes para amenizar os riscos. Apesar de todos os transtornos a experiência foi única. Confesso, no entanto, que não sei se seria capaz de repeti-la. Abs

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